Quinta-feira, 1 de Março de 2007

AS PRIMAS - PARTE II

 
“In illo tempore” muita juventude das serranias das Beiras acorria a Coimbra para continuar os seus estudos e ser doutor. Lá na terra os babosos pais, que mourejavam de sol a sol, ansiosamente esperavam o dia do regresso dos filhos ou das filhas, com o seu canudo, para poderem dizer a todo o povo: -O mê filho é dòtor. Eles e elas lá vinham para a cidade dos estudantes, com a cabeça cheia de histórias de boémias, de serenatas ao luar, de grandes farras, de amorosos passeios no Penedo da Saudade, no Choupal ou em Vale de Canas, nas tardes serenas do Outono ou da excitante Primavera. Alguns até já tinham ouvido falar no jogo da garrafinha!
Por vezes os estudos em Coimbra iniciavam-se já no ensino liceal. Elas, geralmente, eram alunas internas dos vários Colégios da Lusa Atenas. No entanto, durante os períodos de férias, eles e elas lá se encontravam na “santa terrinha”, sem as licenciosidades que a cidade grande eventualmente permitiria. Às escondidas lá iam tendo os seus encontros e faziam promessas de outros encontros fabulosos aquando do seu regresso a Coimbra.
Ora o caso aconteceu assim. Ela veio para o “Colégio das Primas” e ele ali um pouco mais para cima.
O rapaz andava mesmo desesperado. Passavam os dias, as semanas e os meses e nada. Nem um pequeno sinal, um aceno que fosse. As juras feitas lá na terrinha não passavam afinal de vãs promessas. Já o teria esquecido ou trocado por outro? À hora do recreio, ao ouvir os gritinhos estridentes das “primas”, o nosso jovem começava logo a salivar, a salivar…. Lá se ia pespegar na janela debruçada sobre o Colégio, aguardando a visão beatífica que lhe enchesse o dia e a noite. Mas tudo em vão! O pobrezinho definhava de dia para dia. Quase já nem comia nem bebia, tomado pela perda da coisa amada, pela dor pungente da saudade. Já fazia seus os versos de Álvaro de Campos.
 
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
 
Estava a entrar em aguda depressão. Levá-lo ao psicólogo ou ao psiquiatra naqueles tempos era coisa impensável. Além de haver poucos especialistas na matéria, logo pensariam que o pobrezinho estaria prestes a entrar no “Sobral Cid”.
Era urgente fazer alguma coisa por ele, tirá-lo daquele abrasamento que lhe consumia a vida (lá diz o Apóstolo Paulo aos Coríntios “ melius est enim nubere quam uri” «de facto é melhor casar-se do que abrasar-se»). Por isso logo se pensou em criar o M.A.P. (Movimento de Apoio ao Padecente). Seria agora possível dar-lhe algum alento grupal e tirá-lo daquela ressaca. Como diz o povo, “para grandes males, grandes remédios”. Talvez um tratamento de choque o fizesse acordar para a realidade da vida.
Viviam-se então tempos de censura prévia da correspondência recebida ou enviada, mas, verdade seja dita, aquele prefeito já estava embebido dos ares da Liberdade que mais tarde chegariam e, por isso, não abria a correspondência. Perante isto, o M.A.P. decidiu enviar um tónico ao “padecente”. Lançando mão da “poética do fingimento” que já vinha da poesia trovadoresca, em que o trovador se metia na pele da donzela saudosa do amigo, e que mais recentemente fora tão brilhantemente retomado por F. Pessoa “ O poeta é um fingidor…”, o movimento determinou enviar-lhe um embrulhinho misterioso que tinha como remetente a querida “priminha”.
A Primavera estava a chegar com toda a sua pujança de vida e cor. O vento primaveril corria de feição e já enfunava os machos das saias das primas. Segundo o relato de Plínio, historiador da Antiguidade, tinha-se como certo, desde tempos imemoriais, que aqui na Ibéria o vento primaveril é que fecundava as éguas. Era o tempo oportuno para lançar o embrulhinho no marco do correio. No dia seguinte, os apoiantes aguardavam ansiosamente a hora da distribuição do correio. Bem tentavam disfarçar, mas os olhares não saíam daquela figura macilenta do “padecente”. Como iria ele reagir ao embrulhinho?
Estupefacto e um tanto a medo, o “padecente” pegou no embrulhinho e, meio desconfiado, foi-se afastando sorrateiramente, ocultando-o debaixo da capa. Os membros do M.A.P. seguiam-no com o olhar, mas ele esgueirou-se para dentro do quarto e não foi possível naquele momento assistir à revelação, ao levantar do véu, nem apurar qualquer reacção. Havia que ter paciência, muita paciência para averiguar o efeito do “remédio”!
Levantemos nós a parte do véu que nos toca. O embrulhinho não continha qualquer amuleto, qualquer beberagem capaz de desviar a cabeça do “padecente” daquela obsessão. Embrulhado em papel cor-de-rosa estava um pente, um simples pente (pesava pouco e, por isso, o porte era mais barato) acompanhado de uma legenda “Se assim és amável/Penteado serás adorável”.
O efeito prodigioso do embrulhinho e do seu conteúdo depressa se fizeram sentir. Ei-lo que sai do quarto já nas nuvens. Uma lufada de ar fresco primaveril encheu-lhe o peito e o coração, e um brilhozinho nos olhos irradiava como o Sol lá de fora. A “priminha” tinha dado sinal, um sinal de vida e de ressurreição, como a Natureza que se renova com o encantador retorno da Primavera.
publicado por beatonuno às 12:08
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De lamire a 2 de Março de 2007 às 01:19
Este Blogue de Beato já tem pouco, porque é de facto uma "Santidade" de escrita. Eu até me envergonho de pôr as mãos sobre o teclado, depois de ler mais esta História fantástica. A partir de agora o meu pente vai ter mais romance...
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