A quarta prefeitura tinha uma situação privilegiada. Dali, daquela encosta debruçada sobre os laranjais do Mondego, avistava-se a curva do rio desde a Lapa dos Esteios até ao Choupal, perdendo-se o olhar, bem ao longe, na planura do rio a caminho da Figueira da Foz do Mondego. Na outra margem, o Mosteiro de Santa Clara e algumas casas que pouco a pouco iam povoando o outro lado da cidade, marginavam a estrada nacional que conduzia para sul. Mas a beleza natural da paisagem acabava por se tornar habitual, rotineira e vulgar. É que outros valores mais altos se levantavam e atraíam o interesse e os olhares dos alunos.
Ali, bem mais perto, estava um Colégio frequentado por meninas internas, a que, à falta de melhor, chamavam “primas”. Nem sequer sei se elas sabiam do parentesco, mas esta nomenclatura familiar passava de geração em geração, sem que fosse questionada. A localização do Colégio, num plano inferior, permitia usufruir de uma paisagem humana magnífica, que acabava por fazer esquecer a paisagem natural.
Sobretudo à hora do recreio era inevitável aquele reencontro com as “primas”. Lá estavam elas com as suas fardas azuis escuras, os seus risinhos e gritinhos estridentes a jogar à macaca. As mais velhas, porém, já pouco ligavam àquelas macacadas infantis e, em pequenos grupos, cochichavam pelos cantos do jardim, lançando de quando em quando, uns risinhos aflautados, como que a dizer: - Estamos aqui.
Em plano superior, debruçados das janelas e varandas, lá estavam, à hora aprazada, os “galifões”. Havia que aproveitar aqueles breves momentos para espraiar a vista e lançar um olhar guloso sobre aquele Éden cheio de rosados pomos. “Naquele engano de alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito” – a hora do recreio passava tão depressa! - lá estavam eles aguardando um olhar, um gritinho intencionalmente dirigido, um gesto, um aceno fugaz, à socapa das madres.
A geração dos telemóveis e dos SMS, sempre a teclar, sempre a teclar a toda a hora, minuto e segundo, com uma velocidade incrível, não imagina os tormentos que noutros tempos suportavam os “padecentes” para conseguirem enviar uma ténue e discreta mensagenzinha. É claro que não se podia acender fogueira e comunicar, à maneira dos índios, com sinais de fumo, nem berrar de um lado para o outro, porque logo acorreriam os pastores para afastar os lobos esfaimados. Mas, como diz o velho ditado, a necessidade aguça o engenho. E vai daí que se tivesse de recorrer a um gesto mais discreto, a um moderado aceno para expressar o estado de alma, o sentimento apaixonado e ficar a aguardar o retorno possível. Outros, dotados de maior engenho e arte, inventaram um novo e revolucionário sistema de telecomunicações: o espelho! O Sol, bem alto e intenso àquela hora do dia, permitia que os espelhos reflectissem o ardor e a intensidade da paixão na direcção certa. As “primas”, ao princípio um pouco incrédulas ou pensando estar a ter uma revelação sobrenatural com aquela luminosidade tão intensa, depressa se apercebiam que aquilo que viam era bem natural e terreno. A luz vinha do alto, mas o alto estava ali bem em baixo. Um aceno fugidio era o único retorno possível. Afinal havia ali um fosso intransponível – tão perto e tão longe!
Era raro surgir uma oportunidade que propiciasse uma aproximação física mais gratificante. Pensando bem, essa oportunidade apenas surgia aquando da celebração de alguma solenidade religiosa na Sé. É que nesse dia as “priminhas”, com as suas fardas domingueiras e resguardadas pelas madres, lá seguiam a caminho da Catedral. Era dia de festa! E o dia da Senhora das Candeias, precisamente a 2 de Fevereiro, era um dia privilegiado porque no decurso da cerimónia religiosa acendiam-se velinhas. O lume era distribuído, através da vasta Sé, pelos alunos. Era vê-los correr para levar a chama às “priminhas”. Elas, ansiosas, já estendiam o pavio à chama que tardava. Momento tão fugaz quão intensamente desejado e vivido. Chama tão viva quão rapidamente refreada e extinta, com o amortecer do pavio.
O imaginário juvenil estava cheio de fantasias, devaneios e sonhos vãos, mas eram eles que iam alimentando a bruxuleante chama no decurso dos dias.
Razão tinha o poeta, quando na sua Mensagem escreveu:
O mito é o nada que é tudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
(texto adaptado e com supressões)