Segunda-feira, 1 de Outubro de 2007

"MANHÃ SUBMERSA" versão “LIGHT” - II

A organização interna do Seminário da Figueira baseava-se na existência de prefeituras que tinham em atenção, prioritariamente, o nível etário dos alunos e só depois o ano de escolaridade que estes frequentavam. Cada prefeitura tinha como seu patrono um santo que emprestava o respectivo nome à prefeitura. Assim, ao longo de muitos anos e tendo em conta uma escala etária ascendente, mantiveram-se as seguintes prefeituras: S. Luís, Beato Nuno (que deu o nome a este blog), S. José, N.ª Senhora de Fátima e Cristo Rei.
À frente de cada prefeitura estava um prefeito. As instruções que este superiormente recebera resumiam-se a poucas palavras “ Agir com mão de ferro, revestida de pelica”. (A pelica era uma pele finíssima e suave, o pior era o duro ferro que estava lá dentro). Era ele que acompanhava os alunos de manhã à noite, desde o levantar até ao deitar, na capela, no salão de estudo, no recreio, no refeitório, nos passeios dominicais, “na saúde e na doença, na alegria e na tristeza”, como reza o ritual do matrimónio. A sua figura estava sempre presente e vigilante. Como já escreveu ADR “o prefeito era quem nos acordava e deitava, quem nos mandava para o recreio e jogava connosco à bola, (dava-nos essa confiança), quem nos servia a fruta (o nosso bolo de aniversário) e, às vezes, uma tacita de vinho, (só em dia de anos, claro), quem nos acompanhava quando adoecíamos, enfim, o nosso prefeito "substituía" o Pai e a Mãe, nos longos intervalos das férias.”
Os alunos que vinham frequentar o Seminário pela primeira vez lá chegavam carregados com as suas malas: uma de tamanho mais reduzido que era a mala de viagem e uma outra com o “enxoval”, assinalado com o respectivo número para que a roupa não se extraviasse ao vir da lavandaria. É que deste modo os “roupeiros” (os alunos que faziam a distribuição da roupa lavada) facilmente colocariam no local adequado a roupa de cada um. Havia um espaço próprio para a colocação dessas malas: a “Casa das Malas”. Frequentemente, no regresso de férias, alguns alunos traziam uns mimos que a mãe ou a irmã lhe tinham colocado na mala. Era o famoso “contrabando” tantas vezes cobiçado por alguns menos afortunados ou pelos mais velhos, gente sabida e com largo traquejo de assaltos ao “contrabando” dos «rachados».
Era este o nome, a alcunha que os mais velhos davam aos recém-chegados: os «rachados». Esta designação, que passava de geração em geração, tinha um sentido pejorativo, depreciativo que era assumido, mas nunca explicado. Equivaleria certamente ao termo “caloiro” na gíria universitária. Estaria também o «rachado» três furos abaixo de cão como o “caloiro”? Curiosamente, sabemos hoje, o termo não era um exclusivo dos alunos da Figueira. A mesma designação de «rachados» era aplicada aos militantes do PCP que entregavam à PIDE os nomes de outros militantes, como regista Zita Seabra no seu livro FOI ASSIM. A semelhança está apenas no vocábulo em si, nada tem a ver com o conteúdo semântico.
Junto à “Casa das Malas” encontrava-se a “Tasca”. Não se pense que aqui se aviavam umas bebidas brancas ou uns copos de tinto acompanhados duns petiscos, como o nome sugere. Nada disso. Aqui o Ti João de Alfarelos e mais tarde o Ti Fadigas forneciam material de papelaria à mistura com artigos de higiene pessoal, pomada e escovas para o calçado e as tradicionais sapatilhas para a ginástica e para a prática do futebol.
De facto a vida do dia-a-dia não se resumia ao lema monástico do “Ora et labora” (reza e trabalha), porque uma outra norma se acrescentava a esta “Mens sana in corpore sano” (uma mente sã num corpo são). Por isso a actividade física também ocupava o seu lugar, quer através da prática semanal de educação física, quer da prática de uma diversidade de modalidades desportivas e ainda de outras actividades lúdicas, umas dirigidas mais directamente ao intelecto, outras ao desenvolvimento do corpo. A representação teatral também não era descurada. Havia a Sala de Teatro com o seu palco sempre disponível para a realização de várias actividades.
Meio século de existência 1936/37 a 1986/87 durou esta escola e, ao longo deste período, muitas vicissitudes ocorreram. Como toda a obra humana conheceu altos e baixos, a luz e a sombra. Num balanço sumário penso que a face luminosa se sobrepõe largamente à face mais obscura.
Com efeito na vida das instituições como na vida de um ser humano há situações, hábitos e rotinas meramente acidentais e passageiras como o vento, mas há um conjunto de referências, de valores que subsiste para lá do efémero e que não anda ao sabor do vento. A autodisciplina, o autodomínio, a aplicação ao trabalho e ao estudo metódico, o cumprimento do dever, uma certa frugalidade, a honestidade, a hombridade, a solidariedade eram valores que, não só através da palavra (nem sempre através do exemplo), mas também através da tal engrenagem, da tal rotina diária, se procuravam incutir como normas de vida para hoje e para amanhã. Certamente que os métodos utilizados nem sempre seriam os mais apropriados para aquelas idades tão jovens e a despertar de forma tão esfuziante para a vida. As traquinices juvenis nem sempre eram compreendidas, mas a maior parte das vezes não passavam disso mesmo. Veja-se, a título de exemplo, o que um futuro candidato a Nobel da Literatura escreveu então numa redacção: "Estou no Seminário porque quero ser padre e não quero fazer pecados; é que os padres são poucos os que fazem pecados". Ou recorde-se a situação do celebrante que no final da missa convidava à oração, dizendo: - Oremos. E de imediato, por entre dentes, um certo grupinho de alunos respondia: - Barriga cheia é o que nós queremos.
 O diálogo dos “superiores” (como então se dizia) era frequentemente desprovido de uma pedagogia adequada, e quantas vezes ficava reduzido a um simples monólogo. E como consequência disso os desvios comportamentais eram reprimidos e, por vezes, severamente castigados. Mas daquele conjunto de valores que ia sendo incutido ao longo dos meses e dos anos iria ficar algo para a vida futura, como um substrato, como um lastro duradouro e eficaz.
Na narrativa MANHÃ SUBMERSA de Vergílio Ferreira, o Seminário aparece descrito como um espaço de aprisionamento, de cunho ameaçador como um animal de aspecto gigantesco e terrífico. “Lentamente, o casarão foi rodando com a curva da estrada, espiando--nos do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas. Até que, chegados à larga boca do portão, nos tragou a todos imediatamente, cerrando as mandíbulas logo atrás.” Ora se a Figueira tem vários casarões e múltiplas janelas, algumas até estão viradas para o bulício de uma das ruas da cidade, nunca aquele portão se fechava, quer de dia quer de noite (naquela época) e jamais tragou ou cerrou as suas mandíbulas sobre as sucessivas gerações de alunos que por ali passaram.
Apesar de tudo, somos levados a concluir que a Figueira de então não passava de uma versão bastante “light” da MANHÃ SUBMERSA.
publicado por beatonuno às 11:48
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