Segunda-feira, 15 de Maio de 2006

A GALENA

Esta Casa, nos longínquos anos cinquenta e sessenta do século XX, funcionava como um verdadeiro Santuário para os devotos da Rádio. Quem tivesse a dita de lá penetrar, não saía sem trazer um “santinho” com os mais variados sistemas de montagem e os mais sortidos acessórios que lhe permitiriam construir obra perfeita e, sobretudo, a funcionar.
O bendito “santinho” fazia tais milagres que transformava qualquer leigo em radiotécnica num verdadeiro técnico. Eram tão claros os esquemas, irradiavam tanta luz que qualquer iniciado depressa ultrapassava os graus mais insignificantes e se tornava um grão-mestre da Rádio.
Naquelas quintas-feiras de tarde havia sempre uma necessidade urgente de trocar as lentes dos óculos, de ir a uma consulta inadiável no dentista ou em qualquer outra especialidade – no Mija Cão, no Texas, na Cervejaria da Fábrica – e claro, como último recurso, havia sempre a imperiosa visitinha ao “pobre” da Conchada. E lá iam saindo os romeiros por aquele grande portão de ferro com o passo estugado, não fossem chegar atrasados aos mais diversificados locais de “culto”.
Era certo e sabido que os devotos da Rádio tinham de aproveitar estes tempos favoráveis para encherem o papinho com as mais recentes novidades no campo da radiotécnica. Os devotos acudiam à “Casa Rádio” onde se bebia do fino nesta matéria. E convenhamos que mesmo sem os descontos para revenda e para os radiotécnicos, naquele tempo de vacas magras, se comprava muito em conta.
Era ali que se recolhia o material que, de forma bem discreta, ultrapassada a fronteira e a alfândega, entrava de mansinho no quarto dos veneradores da Rádio. E ali, naquele santuário privado, cada um tratava de construir a sua Galena que lhe proporcionaria ouvir música, estar a par do andamento do Mundo, não tanto do País, e, sobretudo, acompanhar os relatos de futebol ou de hóquei em patins, os resultados finais dos diferentes jogos e as classificações das equipas em todos os escalões. Já alguém escreveu sobre o célebre grito de Gooooo…lo lançado no coro da Igreja, durante a reza do terço, numa tarde domingueira.
Abria-se o saquinho com as comprinhas e retiravam-se cuidadosamente, não fosse danificar-se algum acessoriozinho, todas as pecinhas indispensáveis: 1 bobine OM 3 – 1 condensador variável de mica de 500cm – 1 botão graduado de 0 a 100 – 1 detector de Germânio – 5 alvéolos – uma chapinha de baquelite de 8x12cm.
Com o esquemazinho à frente, não havia que enganar. Pecinha a pecinha, meticulosamente, ia surgindo a obrinha de arte. Estava mesmo uma perfeição, um amorzinho aquela chapinha de baquelite de 8x12cm – pensava, todo babado, o pai da recém nascida galeninha.
 
 
Será que não teria havido algum enganozinho pelo caminho? Será que se ouviria mesmo ou, eventualmente, iria ocorrer o que no célebre filme português diz o não menos célebre actor António Silva: “as ondas batem e recuam”? Claro que para se ouvir eram necessários os auscultadores. Mas eles ali estavam já preparados para testar a perícia do aprendiz de radiotécnico. O momento era de emoção, só comparável ao da plateia da NASA perante o momento zero de uma descolagem para o espaço. A ânsia já era muita e portanto vamos a isto. Colocados os auscultadores nos ouvidos e as extremidades nos respectivos alvéolos aquilo era um mar de música que entrava de mansinho pelos ouvidos e ia tomando conta da cabeça, do tronco, dos membros e do coração do devoto. Oh maravilha das maravilhas! Ali isolados do Mundo é que já não ficavam os devotos da Rádio. Agora era usar e abusar, mergulhar a fundo naquelas ondas sonoras que nos traziam os ecos lá de fora, do que ficava por detrás dos altos muros e dos negros gradeamentos de ferro.
 Galena topo de gama
 
Hoje não passa pela cabeça de quem quer que seja o que foram aquelas décadas de cinquenta e sessenta do século passado. Certamente nunca viram esse “filme” e, mesmo que o tivessem visto, pensariam tratar-se de mera ficção Era expressamente proibido possuir uma Galena no quarto e muito menos um rádio! Por isso as tais pecinhas entravam como verdadeiro contrabando e o segredo tinha de ser mantido nos círculos mais restritos e secretos. É que havia sempre olhos e ouvidos atentos a um gesto desprevenido ou incauto, a um som extraviado ou tresmalhado, a uma informação que circulasse fora do rebanho. A desgraçadinha da Galena sofria de uma tenaz perseguição e, infelizmente, surgia aqui e ali um delator que, na ânsia de ficar bem visto aos olhos do Poder, denunciava. Por isso todo o cuidado era pouco Era preciso ter engenho e arte para diversificar e disfarçar o formato e a localização da Galena. Havia quem a instalasse numa simples caixa de fósforos que inocentemente repousava em cima da mesa de estudo. No momento oportuno era só ligar ali os auscultadores e logo jorrava a melodia mais encantadora. Era um momento de fuga delicioso. Eram estes castos e inocentes prazeres que tanto eram contrariados, perseguidos, maltratados.
publicado por beatonuno às 16:45
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De MJS a 20 de Maio de 2006 às 11:54
Fantástico..a emoção do progresso ali entre muros e grades de ferro. Como comparei esta história à da minha querida pilha que tantos momentos de prazer me deu debaixo daqueles lençóis, quando nos meus 13, 14 e 15 anos me deliciava com os romances da Morgadinha dos Canaviais e das Pupilas do Senhor Reitor (aliás, o primeiro romance que li, pois achei que era o que mais se adaptava à minha preparação para o futuro --"Pai, preciso que me envie dinheiro para comprar um livro de orações da noite "As Pupilas do Senhor Reitor" - Oh filho compra, e reza, reza muito todos os dias à noite"). E assim, enquanto o agora descoberto Engenheiro da Galena passava à noite a revista no corredor da camarata, eu "dormia" profundamente debaixo dos lençóis à luz da minha querida pilha (o meu fox, como eu lhe chamava) embalado pelos amores da "Morgadinha dos Canaviais".
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